quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

NegaLôra? – Apropriação indevida para agregar valor à sua “branquitude”.


Por Roque Peixoto

Fiquei perplexo e confuso, nos últimos dias, transitando pelas ruas de Salvador, ao ver ao longo da Avenida Tancredo Neves uma peça publicitária intitulada “NegaLôra”, fazendo uma referência à “cantora” Cláudia Leitte e ao seu show “beneficente”.

Como não sou muito de acompanhar os bastidores da cultura da Bahia, fui procurar entender o que estava acontecendo. A princípio, achei que já era o fim do mundo e 2012 tinha sido antecipado para o dia 12 de dezembro (dia em que vi a referida publicidade). Na verdade se trata de uma jogada de marketing a partir de um nome de batismo dado pelo “grande” músico baiano Carlinhos Brown.

É legítimo que artistas, músicos e musicistas se esforcem para entrar em mercados internacionais, como Estados Unidos e Europa. Mas através da apropriação indevida da identidade de um povo que sofre até os dias de hoje para garantir a sua visibilidade e combater o racismo, não é admissível.

Quando a cantora CL utiliza o termo NegaLôra como sua “nova” identidade de marketing, visa também, agregar valor ao seu produto. Esse movimento poderia ser entendido como algo positivo se não tivesse como ponto de fundo ressuscitar o “mito da democracia racial” que tanto foi responsável pelo aprofundamento sutil e velado do racismo no Brasil.

Sabe-se que a Cláudia Leitte não emplacou, mesmo sendo somente a “Lora” da música baiana, depois do rompimento com a banda Babado Novo. E mesmo se apropriando da música negra da Bahia, não avançou na mídia para além de protagonizar polêmicas em torno do teu pujante desejo de se parecer com a Ivete Sangallo, outra usurpadora da nossa identidade afro-baiana.

Quando a Daniela Mercury se apropriou das músicas do Bloco Afro Ilê Aiyê, muitos de nós já denunciávamos que se iniciava um processo de apropriação indevida dos nossos símbolos. E a consumação do fato se deu quando a mesma disse em auto e bom som: “a cor dessa cidade sou eu” (ela, Daniela M.?).

Se é pra ser a cor da cidade, que sejam Margareth Menezes, Will Carvalho, Mariene de Castro, Vigínia Rodrigues, e todas as outras lindas vozes da “NegaNegras” desta cidade de todos os Orishás.

Se a CL quer agregar valor e afirmar uma identidade (que não é dela) para vender seu produto, compreendo, mas não tolero. Hoje NegaLôra, amanhã o que será? Vamos exaltar nossas NegaNegras com suas vozes baianas cheias de africanidades.

Quanto ao Carlinhos Brown, é a prova que ainda temos muitos capitães do mato pra apavorar por aí!!!

'O Caso NêgaLôra - Cláudia Leitte'

Por Guellwaar Adún-

• Algumas situações me convencem de que todas as áreas do conhecimento deveriam incluir a semiótica em seus cursos.

Reparem o que vou dizer e vejam se estou completamente equivocado ou se ao menos ventilo outra possibilidade de encarar essa estratégia de marketing recorrente, entre muitos/as artistas brancos/as do mundo inteiro.

O racismo não se estrutura apenas economicamente. Ousaria dizer que o racismo se sustenta, sobretudo, semioticamente, e daí se retroalimenta em todos os outros campos da vida em sociedade, como um vírus mutante.

Por exemplo: A Sra. Milk, nessa campanha, não se apropria apenas de signos ou ícones da cultura Negra, à exemplo de indumentárias, musicalidades, danças e ritmos da mulher Negra brasileira. Seus publicitários foram muito mais competentes que isso. Nessa campanha, que evoca a ultrapassada e supostamente insustentável tese da democracia racial, a apresentam como a “Mulher Negra” em si; portanto, trata-se da constituição de um índice. Do ponto de vista simbólico isso é muita coisa. A Claudia Leite agora é a NêgaLôra da Bahia.

Me fez lembrar as novelas antigas citadas na Negação do Brasil de Joel Zito Araújo, o famoso Pai Thomás dentre tantos outros personagens negros que eram representados por atores brancos pintados de negros – desempregando os atores Negros. CL poderia ter aceitado o apelido de Negalora e continuado seu caminho. O xis da questão é que ela se fantasia de mulher negra e com isso ridiculariza o universo Negro feminino com seu deboche habitual.

A campanha é fantástica em termos de penetração, pois gera o que mais se busca ao se promover um produto: A propaganda e contra-propaganda espontânea. Lembram-se do famoso “Falem mal, mas falem de mim!” do velho Cabeça Branca?

Volto a dizer, do ponto vista publicitário essa peça é extraordinária, no entanto eticamente nasce encalacrada até o pescoço e talvez aí resida seu maior risco. Toda campanha publicitária opera no fio da navalha.

Ao mirar no público americano (sua meta atual), buscando legitimar sua ascendência em um batismo equivocado de Carlinhos Brown, evocando uma suposta identidade múltipla, travestindo-se de Nêgalôra, um exemplar grandiloqüente do hibridismo racial que ratifica o famoso “pode misturar” da baianidade momesca, talvez, involuntariamente, detone um canal de diálogo mais intenso sobre o camaleônico racismo brasileiro.

Meter o dedo nessa ferida racista é algo que nos interessa muito.

A compreensão de que esse genérico não carrega consigo as diversas interdições sofridas pela mulher Negra real, derruba várias máscaras. Acredito que é nessa brecha que devemos investir; na reafirmação da existência e persistência do crônico racismo brasileiro, suas transmutações e como o mesmo se constitui no cotidiano da mulher Negra brasileira.

A atitude do Brown não é menos inocente, pois revela o quanto nós, homens Negros, somos licenciosos e omissos em relação ao universo de nossas mulheres.

Dou seguimento à discussão me perguntando o que essa campanha tenta, ‘silenciomente’, dizer às nossas cantoras Negras, a exemplo de Gal do Beco, Graça Onaxilê, Juliana Ribeiro, Marcia Castro, Margareth Menezes, Mariella Santiago, Mariene de Castro, Will Carvalho dentre outras.

Não estaria CL dizendo simplesmente que pode ser o que ela quiser, até cantora Negra, se lhe der na telha? É a síndrome do “posso tudo” das sinhazinhas baianas e brasileiras.