Makely Ka · Belo Horizonte, MG
17/2/2011 · 32 · 3
“Ele ta dando ajuste, mas ainda não acabou não”
A frase acima foi proferida por Pedro de Alexina, 81 anos, morador do povoado de Quartel do Indaiá no documentário “Terra Deu, Terra Come”, dirigido por Rodrigo Siqueira. Ele se refere ao morto, que ainda está quente, que não fez a passagem. Seu Pedro é um dos únicos descendentes de escravos que ainda se lembra dos Vissungos, os cantos herdados dos escravos africanos trazidos para trabalhar na mineração de ouro e diamante entre os séculos XVII e XVIII. Os Vissungos são cantos rituais misturando dialetos africanos de origem banto, como o umbundo e o quimbundo e o português arcaico. Alguns eram entoados em ocasiões fúnebres e outros em situações de trabalho.
Além de Pedro só existe mais um cantador de vissungos vivo, seu Ivo Silvério, com 77 anos, morador de Milho Verde, distrito de Serro.
O filme, com cerca de 1h30 de duração aborda o universo simbólico em torno do personagem, misturando técnicas documentais e ficção de uma forma muito habilidosa. Percebi um curioso acordo tácito entre os críticos que é não revelar o grande desfecho, o segredo velado do corpo presente. Para descobrir do que se trata é necessário assistir à película.
Vencedor do “É Tudo Verdade” e da “Mostra Panorâmica de Gramado”, o filme entrou em cartaz no Cine Humberto Mauro, que é tradicionalmente uma sala voltada para o público cinéfilo e depois ficou algumas semanas numa sala de cinema comercial com uma programação de filmes de arte – o Cineclube Savassi. Foi lá que assisti, acompanhado de outros seis expectadores.
Comecei a freqüentar a região do Alto Jequitinhonha há cerca de 15 anos atrás, quando era uma aventura sair de Belo Horizonte e chegar de carona a Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras passando pela Serra do Cipó. Nesse período eu fui quase todos os anos e desde o início me intrigava o sotaque de alguns moradores, carregados de expressões de origem africana desconhecidas no resto do estado.
Fui buscando mais informação, conhecendo os moradores. Me falaram do povoado do Baú onde eu encontraria falantes de quimbundo. Atravessei o Jequitinhonha próximo da nascente a cavalo e cheguei no remanescente de quilombo. Não levei gravador, fiz fotos e anotações, como a que ilustra esse texto.
Mais tarde encontrei um livro que é uma das principais referências nos estudos de dialetologia africana no estado, chamado “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais” onde estão registrados música e letra de 65 Vissungos recolhidos pelo pesquisador Aires da Mata Machado Filho em 1928 no povoado de Quartel do Indaiá e São João da Chapada, distrito de Diamantina, no norte de Minas Gerais.
Essas anotações serviram de base para a gravação do disco “O Canto dos Escravos”, de 1982 que reuniu Geraldo Filme, Tia Doca e Clementina de Jesus, num registro de 14 daqueles cantos. O link para baixar o disco está aqui: http://umquetenha.org/uqt/?s= O+Canto+dos+Escravos
No disco os intérpretes são acompanhados dos percussionistas Djalma Corrêa, Papete e Don Bira. Apesar da excelência musical a impressão que tenho é que as levadas são variações do jongo, uma manifestação característica do Rio de Janeiro, presente também em São Paulo e no sul de Minas mas inexistente no restante do Estado. O jongo está na origem do samba e é óbvio que os músicos, todos ligados ao ritmo carioca, – apesar de Djalma Corrêa ter nascido em Ouro Preto com formação musical em Salvador e Papete ser maranhense – levaram os vissungos para um outro universo. Estes, por serem cantados em situações específicas de trabalho e cortejo fúnebre, provavelmente não tinham acompanhamento instrumental, quando muito o som de ferramentas de trabalho comuns na atividade de mineração. Aires da Mata faz referência no livro ao som de carumbés (espécie de bateia de madeira usada para separar o cascalho) e almocafres (pequena enxada usada na mineração). O único tambor a que Aires se refere é o angono-puíta (espécie de cuíca grande, ou tambor-onça) e as caixas de couro usados especificamente nos levantamentos de mastros, ocasião onde também se cantavam os vissungos. Me parece que a hipótese mais plausível de um acompanhamento instrumental mais convencional teria necessariamente alguma aproximação com o congado e suas variantes, manifestação característica do interior de Minas, de origem banto e com presença marcante naquela região. Poderíamos dizer que Minas Gerais é, simbolicamente, uma espécie de reino Congo no Brasil, resquício do antigo reino de Benguela na África.
Mas quando é possível identificar nos vissungos cantados por Pedro e Ivo a referência de alguns dos registros feitos na década de vinte por Aires da Mata a diferença é grande, o que é comum no desenvolvimento das tradições orais. Palavras novas vão sendo incorporadas, outras são esquecidas no uso corrente e seu significado se perde.
O fato é que falava-se um dialeto crioulo de origem banto, ou banguela, na região do Serro e Diamantina e os vissungos são o vestígio mais evidente disso. Por isso a importância do registro diacrônico, de forma a estabelecer relações e entender o processo de desenvolvimento ou extinção de uma língua. Só muito recentemente vem sendo descobertas e estudadas as línguas de origem banto faladas no Brasil. Durante muitas décadas acreditou-se que havia somente línguas do tronco nagô-iorubá, predominantes na Bahia. São muito recentes as descobertas de línguas dialetais africanas de origem banto faladas por comunidades isoladas como a de Tabatinga (MG) e Cafundó (SP), além do crioulo falado em São João da Chapada e da língua mina-jeje falada pelos negros de Ouro Preto no setecentos.
Para quem quiser se aprofundar no assunto, a língua e os costumes dos remanescentes de quilombo do Cafundó foram estudados e publicados pelo pesquisador Carlos Vogt no livro “Cafundó, a África no Brasil – língua e sociedade”. O dialeto da comunidade de Tabatinga, em Bom Despacho, foi estudado pela professora Sônia Queiroz e publicado no livro “Pé preto no barro branco: a língua dos negros de Tabatinga”. A língua mina-jeje foi estudada pela lingüista Yeda Pessoa de Castro a partir do dicionário do português Costa Peixoto livro “A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII”.
Com relação aos vissungos da região do Serro e Diamantina, além da gravação de 1982, a cantora paulista Monica Salmaso também registrou um dos vissungos recolhidos por Aires da Mata no seu disco Trampolim, de 1998. Há notícias de gravações mais recentes realizadas por Erildo Nascimento em Diamantina e Lúcia Nascimento no Serro, mas não encontrei maiores referências a esse material além de algumas citações em artigos acadêmicos.
Além dessas não conheço outras gravações mas sempre achei que este seria um projeto interessante: gravar em disco todos os 65 vissungos a partir das anotações do livro de Aires da Mata Machado. Seria um documento histórico para as futuras gerações conhecerem um elo perdido da tradição de matriz africana no Brasil, principalmente agora que o ensino de música vai voltar ao currículo obrigatório.
A frase acima foi proferida por Pedro de Alexina, 81 anos, morador do povoado de Quartel do Indaiá no documentário “Terra Deu, Terra Come”, dirigido por Rodrigo Siqueira. Ele se refere ao morto, que ainda está quente, que não fez a passagem. Seu Pedro é um dos únicos descendentes de escravos que ainda se lembra dos Vissungos, os cantos herdados dos escravos africanos trazidos para trabalhar na mineração de ouro e diamante entre os séculos XVII e XVIII. Os Vissungos são cantos rituais misturando dialetos africanos de origem banto, como o umbundo e o quimbundo e o português arcaico. Alguns eram entoados em ocasiões fúnebres e outros em situações de trabalho.
Além de Pedro só existe mais um cantador de vissungos vivo, seu Ivo Silvério, com 77 anos, morador de Milho Verde, distrito de Serro.
O filme, com cerca de 1h30 de duração aborda o universo simbólico em torno do personagem, misturando técnicas documentais e ficção de uma forma muito habilidosa. Percebi um curioso acordo tácito entre os críticos que é não revelar o grande desfecho, o segredo velado do corpo presente. Para descobrir do que se trata é necessário assistir à película.
Vencedor do “É Tudo Verdade” e da “Mostra Panorâmica de Gramado”, o filme entrou em cartaz no Cine Humberto Mauro, que é tradicionalmente uma sala voltada para o público cinéfilo e depois ficou algumas semanas numa sala de cinema comercial com uma programação de filmes de arte – o Cineclube Savassi. Foi lá que assisti, acompanhado de outros seis expectadores.
Comecei a freqüentar a região do Alto Jequitinhonha há cerca de 15 anos atrás, quando era uma aventura sair de Belo Horizonte e chegar de carona a Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras passando pela Serra do Cipó. Nesse período eu fui quase todos os anos e desde o início me intrigava o sotaque de alguns moradores, carregados de expressões de origem africana desconhecidas no resto do estado.
Fui buscando mais informação, conhecendo os moradores. Me falaram do povoado do Baú onde eu encontraria falantes de quimbundo. Atravessei o Jequitinhonha próximo da nascente a cavalo e cheguei no remanescente de quilombo. Não levei gravador, fiz fotos e anotações, como a que ilustra esse texto.
Mais tarde encontrei um livro que é uma das principais referências nos estudos de dialetologia africana no estado, chamado “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais” onde estão registrados música e letra de 65 Vissungos recolhidos pelo pesquisador Aires da Mata Machado Filho em 1928 no povoado de Quartel do Indaiá e São João da Chapada, distrito de Diamantina, no norte de Minas Gerais.
Essas anotações serviram de base para a gravação do disco “O Canto dos Escravos”, de 1982 que reuniu Geraldo Filme, Tia Doca e Clementina de Jesus, num registro de 14 daqueles cantos. O link para baixar o disco está aqui: http://umquetenha.org/uqt/?s=
No disco os intérpretes são acompanhados dos percussionistas Djalma Corrêa, Papete e Don Bira. Apesar da excelência musical a impressão que tenho é que as levadas são variações do jongo, uma manifestação característica do Rio de Janeiro, presente também em São Paulo e no sul de Minas mas inexistente no restante do Estado. O jongo está na origem do samba e é óbvio que os músicos, todos ligados ao ritmo carioca, – apesar de Djalma Corrêa ter nascido em Ouro Preto com formação musical em Salvador e Papete ser maranhense – levaram os vissungos para um outro universo. Estes, por serem cantados em situações específicas de trabalho e cortejo fúnebre, provavelmente não tinham acompanhamento instrumental, quando muito o som de ferramentas de trabalho comuns na atividade de mineração. Aires da Mata faz referência no livro ao som de carumbés (espécie de bateia de madeira usada para separar o cascalho) e almocafres (pequena enxada usada na mineração). O único tambor a que Aires se refere é o angono-puíta (espécie de cuíca grande, ou tambor-onça) e as caixas de couro usados especificamente nos levantamentos de mastros, ocasião onde também se cantavam os vissungos. Me parece que a hipótese mais plausível de um acompanhamento instrumental mais convencional teria necessariamente alguma aproximação com o congado e suas variantes, manifestação característica do interior de Minas, de origem banto e com presença marcante naquela região. Poderíamos dizer que Minas Gerais é, simbolicamente, uma espécie de reino Congo no Brasil, resquício do antigo reino de Benguela na África.
Mas quando é possível identificar nos vissungos cantados por Pedro e Ivo a referência de alguns dos registros feitos na década de vinte por Aires da Mata a diferença é grande, o que é comum no desenvolvimento das tradições orais. Palavras novas vão sendo incorporadas, outras são esquecidas no uso corrente e seu significado se perde.
O fato é que falava-se um dialeto crioulo de origem banto, ou banguela, na região do Serro e Diamantina e os vissungos são o vestígio mais evidente disso. Por isso a importância do registro diacrônico, de forma a estabelecer relações e entender o processo de desenvolvimento ou extinção de uma língua. Só muito recentemente vem sendo descobertas e estudadas as línguas de origem banto faladas no Brasil. Durante muitas décadas acreditou-se que havia somente línguas do tronco nagô-iorubá, predominantes na Bahia. São muito recentes as descobertas de línguas dialetais africanas de origem banto faladas por comunidades isoladas como a de Tabatinga (MG) e Cafundó (SP), além do crioulo falado em São João da Chapada e da língua mina-jeje falada pelos negros de Ouro Preto no setecentos.
Para quem quiser se aprofundar no assunto, a língua e os costumes dos remanescentes de quilombo do Cafundó foram estudados e publicados pelo pesquisador Carlos Vogt no livro “Cafundó, a África no Brasil – língua e sociedade”. O dialeto da comunidade de Tabatinga, em Bom Despacho, foi estudado pela professora Sônia Queiroz e publicado no livro “Pé preto no barro branco: a língua dos negros de Tabatinga”. A língua mina-jeje foi estudada pela lingüista Yeda Pessoa de Castro a partir do dicionário do português Costa Peixoto livro “A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII”.
Com relação aos vissungos da região do Serro e Diamantina, além da gravação de 1982, a cantora paulista Monica Salmaso também registrou um dos vissungos recolhidos por Aires da Mata no seu disco Trampolim, de 1998. Há notícias de gravações mais recentes realizadas por Erildo Nascimento em Diamantina e Lúcia Nascimento no Serro, mas não encontrei maiores referências a esse material além de algumas citações em artigos acadêmicos.
Além dessas não conheço outras gravações mas sempre achei que este seria um projeto interessante: gravar em disco todos os 65 vissungos a partir das anotações do livro de Aires da Mata Machado. Seria um documento histórico para as futuras gerações conhecerem um elo perdido da tradição de matriz africana no Brasil, principalmente agora que o ensino de música vai voltar ao currículo obrigatório.
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